O desafio da moda circular para o chão de fábrica nacional

A circularidade não é apenas um desafio para o chão de fábrica, mas um ideal de excelência para qualquer produção. A ideia de desperdício zero e total aproveitamento de recursos em produtos, e até a monetização dos descartes, não poderia soar mais capitalista para os empresários. Segundo a Abit, o Brasil produz cerca de 175 mil toneladas de resíduos têxteis por ano e desperdiça mais de 90% dos mesmos incorretamente. Estamos falando de uma má gestão de uma excelente fonte de matérias primas.

Neste contexto, o upcycle – transformação de uma usada em peça nova – representa mais do que uma estética direcional. É também uma inspiração, um modelo produtivo que prolonga a longevidade de um produto, amplia sua receita, e aproveita ao máximo seu valor comercial.

Muitas marcas jovens e autorais estão surgindo já calcadas neste conceito, como a 3JEANS, Mig Jeans, e Think Blue – todas fundamentadas em produções menores. Mas para as grandes companhias, que lidam com volumes expressivos de produção, a implantação da prática se torna mais difícil.

“O upcycling dentro do que enxergamos na economia circular, teoricamente seria a visão de que o que é resíduo de um elo da cadeia pode vir a ser insumo do outro”, explica Evelise Anicet Rutschling, coordenadora do Núcleo de Design de Superfície da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também designer da marca gaúcha Contextura, signatária do projeto Global Fashion Agenda 2020.

Inteirada acerca da visão de moda circular apologizada pela plataforma, que tem a missão de divulgar a sustentabilidade em conhecimento especializado a nível estratégico e operacional, Evelise explica que a proposta sugerida pelo Global Fashion Agenda é de que os fabricantes arquem com a responsabilidade dos produtos até o final do seu ciclo .

“Uma pessoa compra jeans, e após o uso a peça volta para o fabricante, essa seria a logística correta: o fabricante é responsável pelo seu produto, mesmo que ele não o transforme, é ele quem deve dar um destino correto, montando uma rede de parceiros para prover a continuidade desse ciclo”, explica.

O upcycling, nesse novo paradigma comercial corresponderia a primeira das etapas exigidas para esta adequação. “São três etapas, é o retorno da peça rebatido por um desconto da marca. Depois é a restauração da peça, que seria o upcycling. Mas essa transformação é feita peça a peça, e representa um custo muito alto: eu tenho que ter um funcionário e criatividade para arrumar aquele jeans e aí voltar num mercado de segunda mão para vendê-lo restaurado”, contextualiza.

Essa realidade de fato é um desafio para que a prática do upcycle se instaure na linha de produção em grandes volumes. No entanto passos modestos podem representar o princípio de avanços providenciais para usar justamente essa característica a favor das marcas. Como exemplo, temos a Hering que, através da FHH, vem desenvolvendo através do projeto Tramas Afetivas um verdadeiro laboratório de inovação em moda circular. Há também a Damyller, que recentemente lançou uma coleção chamada Recollect, completamente desenvolvida com peças ressignificadas.

“A linha foi produzida com pouquíssimas peças – 20 no total”, compartilha Fernanda Webster, relações públicas da marca. “A ideia da linha Recollect veio para unir o não descarte da peça com leve defeito com sua transformação em criação única: cada item é diferente da outro e nunca teremos peças iguais”, compartilha. De acordo com Fernanda, a ideia é desenvolver coleções nesse formato, de tempos em tempos para inserir gradativamente a cultura do upcycle e da moda circular na empresa.

“Temos apenas uma artista que trabalha com a gente, em um processo de desenvolvimento uma a uma: é arte, nenhuma peça fica igual a outra”, conta a relações públicas. “A receptividade da coleção foi bacana, várias peças foram vendidas no dia do lançamento. Isso nos mostra que o cliente Damyller já percebe esse movimento”, conta Fernanda.

“Sempre tentamos dar um novo destino para tudo que é descartado e estamos muito felizes em ver que estamos no caminho certo. A segunda etapa já está em produção, e terá mais 15 unidades”, divulga.

Mas além do upcycle a circularidade também encontra canais na segunda etapa do retorno desse jeans, que é a regeneração. “São etapas: primeiro se recebe a peça, se está bom, se vende novamente, se tem defeito, se restaura. A terceira etapa então é o downcycle”, explica Evelise Rutshiling.

Porém, este destino também tem suas singularidades. “O downcycle implica em um custo muito grande para regeneração dessa matéria prima, que ao ser desfibrilada perde qualidade: a fibra fica cortada, e mais frágil”, explica. A recomendação, de acordo com a doutora em moda sustentável, é a transformação do material em itens que não precisem apresentar tanta resistência, como o blusão de malha ou até a embalagem do produto.

Entre os exemplos de downcycle a nível mundial, temos a Artistic Fabric & Garment Industries (AFGI) em Karachi, no Paquistão, que transforma peças de jeans usados em novas fibras de algodão reciclado: um processo que permite aos fabricantes criarem roupas novas diretamente das antigas.

Entre os principais desafios para esse tipo de reciclagem no Brasil, está a necessidade de incentivos fiscais, centros de logística e transporte para que o custo da reciclagem seja mais atraente. Sem contar a falta de uma coleta seletiva que faz com que o Brasil importe toneladas de resíduos ao invés de reciclar os que são gerados internamente. De acordo com estudos realizados pela USP, o Brasil deixa de ganhar cerca de US$12 bilhões por ano, devido a essa logística mal formulada.

O Upcycle por sua vez, está sendo visto como estratégia para otimizar a produção das marcas e agregar valor imaterial às mesmas – mas não assumiu ainda sua responsabilidade pós-uso do consumidor. Esta, ainda vem sendo confiada aos brechós. E estes, conforme pesquisas recentes já mencionadas aqui, estão ocupando um espaço cada vez mais importante no guarda roupa do consumidor, a ponto de colocar a roupa usada como principal rival da roupa nova. Salvo uma louvável procedência reaproveitada e ressignificada.

Agradecimentos à Evelise Anicet Rutshiling, pós-doutora em Design de Superfície e Moda Sustentável e Fernanda Webster , relações públicas da Damyller.

Fonte: Vivian David | Foto: Reprodução